Creio que pra qualquer pessoa que goste de engajar com arte e se sente renovado após uma ótima experiência com suas mídias favoritas, poucos momentos são tão gratificantes quanto consumir uma obra que desafia conceitos e normas pré-estabelecidas daquele tipo de arte e que possui um senso de unicidade tão arrebatador que parece ter sido concebida por indivíduos alheios aos vícios muitas vezes danosos de uma cultura dominante. Não apenas isso, mas ser tão único dentro de um conjunto de obras já consagradas é um dos elogios mais sinceros que podem ser dirigidos a esses tipos de trabalhos, já que os sentimentos do indivíduo nos instantes que a consome são sem precedentes e talvez sem mesmo algo semelhante após aquilo.
A verdade inegável e imutável é que o processo de criação da arte é composto de não apenas inúmeras inspirações herdadas de outras obras, como também da aplicação e execução desses influxos em uma peça original. O grande desafio é sempre como transformar esse amálgama em algo original e único sem perder a identidade e alma do que é intenção ser transmitido por seus autores.
E o que tudo isso tem a ver com um jogo sobre dilacerar monstros gigantes e envolver-se (ou não) em intrigas palacianas à la George R.R. Martin? Muito mais do que aparenta à primeira vista, por incrível que pareça.
Dragon's Dogma é um jogo lançado no longínquo ano de 2012, época em que eu ainda esperava ansiosamente a chegada da minha adolescência. Para o espanto de absolutamente ninguém que acompanhava seu desenvolvimento, foi um jogo recebido de forma mista em todos os âmbitos possíveis. Vendas não foram avassaladoras como a Capcom da sexta geração de consoles infalivelmente esperava de todos os seus jogos, por mais medíocres que fossem, e a crítica e público receberam, de maneira geral, as tentativas de inovação e falta de conveniência de vários dos elementos do jogo como algo no mínimo estranho e não necessariamente positivo. É, sem a menor sombra de dúvida, um jogo falho em muitos de seus aspectos. No entanto, suas características que se destacam como muito originais e bem executadas são numerosas e suas inspirações acertadas em vários dos títulos mais consagrados e influentes da indústria japonesa são claras e muito bem aplicadas.
E, honestamente, eu não poderia estar mais feliz em reportar que todas as supracitadas qualidades (e alguns defeitos também) dessa excêntrica pérola de 2012 estão presentes em sua inesperada sequência de 2024 e fazem-se mais relevantes e modernas do que jamais tinham sido no original.
Essa review NÃO CONTÉM SPOILERS de Dragon's Dogma II ou de seu predecessor até certo ponto. Quando chegar o momento de incluí-los em uma seção ao final do texto, haverá um aviso.
Sobre Reis, Rainhas e Peões
Dragon's Dogma II narra a jornada do personagem criado pelo jogador, que se encontra em uma situação nada agradável: durante o ataque de um dragão a um vilarejo, ele tomba em combate defendendo o lugar e tem o coração arrancado de seu peito pelo monstro. O que o aguarda em seguida não é a morte, mas sim o recebimento do título de Nascen (uma péssima tradução de “Arisen”, diga-se de passagem), nome dado ao prenunciado herói que reencarna a cada era e é encarregado de purgar o mundo desse dragão que assola as terras de Vermund, reino onde o jogo se passa. Com um buraco onde devia estar seu coração e a companhia e ajuda de seus fiéis Peões, personagens em que vou me aprofundar posteriormente, o Nascen parte nessa jornada clássica de Dungeons & Dragons.
O jogo apresenta uma estrutura que à primeira vista pode parecer muito elementar: um mundo aberto de fantasia medieval, com algumas cidades-chaves espalhadas por seu extenso mapa. As trilhas, masmorras e estradas que as conectam transbordam de monstros que variam desde os famigerados goblins e bandidos até elementais de pedra e ciclopes armadurados. Tendo uma direção de arte muito inspirada na trilogia O Senhor dos Anéis de Peter Jackson e combate baseado em classes com diferentes habilidades e papéis em combate, eu não descartaria a possibilidade de muitos jogadores encararem as horas iniciais com um certo ar pouco impressionado ou até desinteressado.
Conforme o jogo progride e o leque de possibilidades mecânicas vai se abrindo perante o seu personagem, o jogador mais atento perceberá a variedade colossal de personalização, exploração e interação que o título oferece. E creio que, se há um consenso em relação a esse jogo, é que o sistema de Peões é o maior diferencial dele em relação a qualquer outra obra na mídia.
Dentro da história do jogo, Peões são indivíduos que seguem a vontade do Nascen sem questionamento algum e possuem um imenso senso de dever para com o protagonista, auxiliando-o em toda sua jornada para abater o dragão. Mecanicamente, isso se traduz para um sistema de party extremamente divertido de experimentar com todas as possibilidades.
Logo na hora inicial do jogo, o jogador é levado à tela de criação do seu Nascen e, logo após, à criação do seu Peão principal. Não só você tem a chance de criar ambos com extremo detalhes na excelente criação de personagens, como também precisa escolher qual a personalidade do seu Peão. Isso vai ditar como ele age nas mais diversas situações, incluindo linhas de diálogo completamente diferentes para cada personalidade que você opta. Os outros dois Peões que o jogador pode convocar para suas viagens provém dos que foram criados por outros jogadores, então jogar online é sempre uma excelente escolha pra invocar Peões feitos pela comunidade e até mesmo por amigos que também jogam Dragon's Dogma II.
Dentre as várias qualidades que essa sequência herda do original que eu havia citado anteriormente, a maior delas é definitivamente a primorosa IA de comportamento dos seus companheiros durante combate, exploração e quaisquer outras atividades que o jogador escolha engajar. Sem a menor dúvida, os Peões e seus respectivos comportamentos são o mais que sólido pilar que sustenta toda a experiência com o jogo e enriquece-a em um nível intrinsecamente necessário para todo o game design que o jogo escolhe seguir.
Não apenas por motivos narrativos, mas a presença dos Peões guardando sua retaguarda contra as ameaças da estrada, abrindo caminho à frente como um batedor que também coleta matérias ou apenas conversando sobre os mais recentes desdobramentos da história faz-se fundamental em um jogo que aproveita ao máximo todas as possibilidades que a integração de quatro companheiros pode conquistar como um bom RPG.
Em combate, os Peões agem independentemente ou seguindo suas ordens ao mesmo tempo em que aprendem o comportamento durante batalhas do Nascen e passam a aplicá-lo em lutas subsequentes. E descrever essa programação de IA como simplesmente criativa é subestimar a capacidade desse jogo em surpreender a cada esquina se você dedicar tempo para compreender como seus mecanismos funcionam.
Se o jogador gosta de focar em pontos fracos das criaturas, os Peões vão passar a procurar ao máximo facilitar sua chegada neles ou até mesmo assumir totalmente a responsabilidade de atingi-los. Já se você prefere uma abordagem mais direta, desequilibrando os monstros grandes para tornar a tarefa de atacá-los sem se preocupar com retaliação mais fácil, seus camaradas vão encontrar brechas para o Nascen empurrar e derrubar as mais variadas ameaças. Agora, se a sua prioridade é encontrar no campo de batalha objetos pesados e danosos o suficiente para arremessar nas criaturas, os Peões vão honrar seus deveres e transformar a batalha em um jogo de queimada valendo suas vidas.
Já na exploração e progressão de missões, os Peões irão entregar ao jogador em forma de diálogo inúmeras dicas de onde se encontram baús com valiosos itens, às vezes até mesmo eles os abrindo e poupando seu tempo, caminhos ocultos em masmorras e estradas alternativas que podem levar o grupo inteiro a novas descobertas no mundo aberto. Algumas missões que não possuem marcadores no mapa e que dependeriam inteiramente da capacidade de dedução e exploração do jogador para achar os pontos em que elas progrediriam podem ser muito encurtadas caso o Peão que está no seu grupo já tenha participado delas no mundo de outro jogador, portanto já possuindo o conhecimento de como elas se desenrolam e transmitindo-o ao Nascen atual.
Esses são apenas alguns exemplos focados de como é muito perceptível que um tempo considerável do desenvolvimento do jogo foi absorvido na parte de aprimorar o funcionamento geral dos Peões que estreou em 2012 e transformá-los em um dos comportamentos de NPCs mais admiráveis que essa indústria já presenciou. Mais que simplesmente uma experiência mecânica sensacional, isso implica também que esses companheiros são pessoas reais dentro daquela ficção, com vontades, impulsos e aprendizados próprios e que buscam aplicar o que sabem com autonomia, se diferindo de inúmeros companheiros comumente achados em videogames, que existem unicamente em função do seu personagem e das suas vontades.
Sobre espadas, flechas e cajados
Uma porção considerável do tempo do jogador em Vermund será duelando com criaturas de diferentes tamanhos e maneiras de tentar acabar com sua missão mais cedo do que o previsto. Dragon's Dogma II oferece uma gama de variadas classes, chamadas dentro do jogo de Vocações, que o Nascen e os Peões podem optar para lidar com essas ameaças, desde o básico Combatente com suas fiéis espada e escudo e o Arqueiro que ataca a distância até o Mago focado em dar suporte e curar os membros do grupo que estão na linha de frente e o Ladrão, que prefere uma abordagem mais indireta, buscando tirar o equilíbrio dos inimigos e atacar pelas costas.
Conforme a jornada do grupo alcança novas localidades e grandes centros urbanos medievais, novas Vocações são liberadas mediante a conclusão de missões opcionais e a sede por experimentação dentro do combate só aumenta, já que cada classe apresenta uma customização profunda de habilidades disponíveis conforme o jogador mais engaja com ela e torna as experiências de cada um com essas batalhas muito diferentes.
Essas múltiplas habilidades especiais, ao contrário do que inicialmente pode aparentar, não são ditadas por cooldown como inúmeros jogos fazem atualmente, limitando grande parte do momento a momento de cada batalha aos ataques básicos do personagem. Muito pelo contrário, elas são ilimitadas desde que o Nascen tenha estâmina suficiente para executar a habilidade desejada. Esse medidor de estâmina, caso chegue ao seu fim, torna o personagem cansado e cambaleante por alguns segundos até ele se recuperar, rendendo-o totalmente inútil nesse precioso tempo.
Essa dinâmica básica já seria categórica para transformar cada combate em uma espécie de ritmo compassado e ensaiado entre o Nascen e seus Peões, mas o brilho não finda apenas nisso. Externa às possibilidades inerentes aos heróis, os inimigos também concedem significativas variedades de exploração para a vitória, sendo a mais relevante delas o fato de que absolutamente todos os monstros grandes podem ser escalados.
Em uma mecânica muito parecida com a base de Shadow of the Colossus (2005), o personagem agarra nos pelos ou reentrâncias das criaturas e, com um pouco de tempo e gasto de estâmina, consegue alcançar qualquer membro do alvo, possibilitando assim não apenas acertar preciosos ataques nos pontos fracos, que na maior parte do tempo são as cabeças, como também desequilibrar mais facilmente o monstro e partir para o ataque devastador. É uma mecânica tão fundamental ao loop de combate que não deixo de me surpreender ao lembrar que o jogo se recusou a entregar um tutorial explicando como ela funcionaria, apenas soltou a mão do jogador e confiou que, com um pouco de experimentação e paciência, ele encontraria o caminho como um verdadeiro Nascen. É um RPG de interpretação de personagem, no final das contas. Esse não é o único caso em que o jogo se restringe a entregar informações indispensáveis de mão beijada, tópico que discutirei na próxima seção.
De volta ao combate, nunca foi fadigante engajar em duelos contra monstros gigantes. Não apenas por todas as variedades de abordagens que descrevi, como também pelo papel fundamental do ambiente nos combates. Inimigos podem ficar enraivecidos e serem atraídos pelo jogador mais sagaz a chocarem a cabeça contra paredes de montanhas assim como você também pode usar pontos mais elevados para pular diretamente no ponto desejado do monstro. A soma da totalidade de fatores determinantes nas batalhas compõe um sistema de combate invejável pra qualquer RPG de ação lançado após 2024. Os diferentes caminhos que o jogador pode tomar ao montar uma party de Peões, com um focado em melhorar os atributos dos demais, um atacando à distância e outros tentando incansavelmente derrubar um minotauro, são capazes de elevar cada momento dessa dança em algo extremamente apoteótico e triunfante, potencializados pela trilha sonora que, embora pouco memorável na maior parte da jornada, entra com força total nos instantes finais da vida de uma presa que foi árdua de abater.
Apesar de o combate pecar na falta de variedade de inimigos, tentando disfarçar essa imperfeição com rearranjo de cores de criaturas já encontradas várias vezes anteriormente, não deixa de ser uma façanha de intenção somada a execução exemplar e que é imensamente único em um panorama da indústria AAA.
Sobre tavernas e viajantes
Hideaki Itsuno é uma figura curiosa dentro da história da Capcom. Mais conhecido por seus trabalhos na franquia Devil May Cry e em jogos de luta como Power Stone e Capcom vs SNK, o diretor sempre apresentou um anseio ímpar em possibilitar que o jogador se expressasse ao máximo e de maneira polida com as mecânicas e sistemas apresentados em seus projetos, traço que o colocou entre os nomes de mais destaque dentro de uma empresa que é repleta de exemplos de game designers extremamente bem-sucedidos. Mais que isso, nota-se por vezes em suas obras um tom que beira o desdém por conveniências vigentes em jogos contemporâneos, muitas vezes iteradas ao extremo e completamente esvaziadas de sentido.
Essas características fortes de direção já eram evidentes no Dragon's Dogma de 2012, jogo que sem a menor sombra de dúvida não existe da forma como é satisfazendo totalmente as aspirações de Itsuno para aquele projeto. 12 anos após o clássico nichado conquistar a mente de jogadores que ansiavam por algo único dentro do cenário de RPGs de ação, sua sequência atinge algo que o original infelizmente jamais sequer sonhou em ser: uma obra bem conduzida do início ao fim, sem a necessidade de se apressar próximo a conclusão por adversidades de orçamento e prazo.
Engana-se o leitor que, talvez por tudo descrito até o momento, imagina Dragon's Dogma II como um jogo puramente focado na caça e abate de criaturas mitológicas europeias, uma espécie de Monster Hunter menos lúdico. Dragon's Dogma II, acima de tudo, é um RPG que busca com seus sistemas apresentar um simulacro de um mundo medieval que, por sua natureza extrema, não se dobrará às vontades do jogador.
“Dilacerar” e “matar” estão longe de ser os dois únicos verbos com os quais o Nascen interage com o ambiente ao seu redor, e a variedade de atividades disponíveis dentro e fora de missões, sejam principais ou opcionais, é vasta.
Vamos por partes. Absolutamente todos, e são muitos, NPCs do jogo têm nome, gostos e local onde frequentam, informações catalogadas que podem ser consultadas a qualquer momento no menu. A relação do Nascen com os principais deles pode ser aprimorada ou comprometida dependendo da maneira como o jogador conduz missões, como ele se comporta nos principais centros urbanos e, em um fator mais simples, se ele presenteia-os entre uma viagem e outra. A fantasia de poder, pilar tão intrínseco a uma mídia que parece implorar constantemente ao seu consumidor que não a abandone, oferecendo sempre a próxima gratificação instantânea, é aplicada de maneira muito mais inteligente aqui. O mundo não obedece o tempo e necessidades de um jogador que nem reconhece, mas sim segue seu curso naturalmente, como um ambiente verossímil. Por exemplo, algumas missões opcionais têm como base um contador regressivo. Após alguns dias dentro do ciclo de dia e noite do jogo, aqueles objetivos já terão se perdido, seja porque um pobre coitado foi dilacerado por lobos antes que o jogador pudesse salvá-lo, seja porque um NPC simplesmente cansou-se de esperar a boa vontade do Nascen.
Meu exemplo favorito, porém, de quão interessante e bem realizado é o design de missões de Dragon's Dogma II são os casos em que algo aparentemente banal se torna fundamental dentro do espectro político e social do respectivo local. O jogo tem a brilhante ideia de não deixar claro em momento algum o que faz parte da progressão da história principal da caça ao dragão. A aba de missões no menu principal apenas lista quais estão ativas no momento, sem separá-las entre obrigatórias e opcionais. Isso gera momentos genuinamente surpreendentes, sendo o maior exemplo disso na minha experiência uma missão na qual um rapaz vagava pelas ruas da primeira grande cidade encontrada em Vermund e contava com a ajuda do meu Nascen ocasionalmente para conhecer e melhor se familiarizar com a parte pouco favorecida do burgo. Algo bem simples e nada relevante, não? Conforme as interações avançam, esse personagem revela pistas de quem ele realmente é e o quão fundamental é seu papel no futuro do Nascen, e uma missão que inicialmente parecia opcional pela recusa do jogo a me entregar essa distinção se manifesta como a progressão natural da jornada principal. Pináculo do design de missões, na minha humilde opinião.
Acredito que a melhor amostra de quão maravilhosamente bem funcionam as mais diversas interações do jogador com o mundo e a reatividade de seus elementos é a tão divulgada em materiais promocionais Esfinge. Não à toa essa criatura das mitologias gregas e egípcias foi amplamente marketada como um dos grandes momentos de Dragon's Dogma II, e dizer isso ainda é subestimar o que se revelou como minha missão favorita do jogo.
A Esfinge de Itsuno é realmente a contraparte tão famosa do panteão de criaturas mitológicas: astuta como o leão que constituí grande parte de seu corpo e visualmente estonteante e elegante como o pavão que lhe provê as asas coloridas. Como era o esperado, não é uma alma que procura quebrar seu espírito através da vulgar violência física, mas sim através de charadas. Após passar dezenas de horas lutando contra quimeras, minotauros e ciclopes, a Esfinge é a brisa do ar fresco da novidade que nega a abordagem direta do combate e, pelo contrário, propõe ao Nascen uma série de desafios de lógica que testam o seu conhecimento daquele mundo e dos mecanismos que o compõem, recompensando o jogador atento com a satisfação de não sofrer o pesado olhar de reprovação da Esfinge caso falhe em seus enigmas e, dependendo do momento da missão, até não perdê-la completamente, já que algumas respostas erradas a entediarão e ela deixará o local onde repousa para sempre, tornando seu arco incompletável para aquele Nascen. Essas charadas exigem os mais diferentes tipos de engajamento com os sistemas do jogo, alguns deles até autoconscientes de sua inserção dentro de um videogame e aproveitando esse fato para brincar com as possibilidades da mídia e lançar uma piscadela de olho para o jogador que aprecia brincadeiras metalinguísticas.
Não apenas uma das batalhas contra chefe mais criativas que já tive a satisfação de presenciar, como também um testamento à tomada de riscos no desenvolvimento de jogos e a recompensa de uma boa missão não são os pontos de experiência ao final ou um item especial, mas sim o próprio processo de solucioná-la.
Sobre carroças e acampamentos
É inegável que a qualidade de um jogo de mundo aberto é amplamente definida pelo quão satisfatória e bem executada é a travessia daquele terreno. Jogos que se enquadram nesse modelo nos últimos 15 anos têm um histórico vicioso de abusarem do sistema de viagem rápida para qualquer ponto do mapa. Pelo lado positivo, esse recurso proporciona uma economia de tempo para o jogador e pode evitar que a fadiga se acumule caso exista obrigatoriedade de retornar a um lugar previamente visitado sem nenhum evento interessante ou novo ocorrendo nesse percurso. Já na parte negativa, a banalização do mundo inerente a esse sistema beira o inevitável, podendo variar seu grau de acordo com o quão tematicamente a viagem rápida faz sentido dentro do contexto daquele lugar e quais são as implicações e consequências do uso desse recurso.
Dragon's Dogma II não possui um sistema de viagem rápida. Ou ao menos não no sentido tradicional da mecânica. O jogo tem como atividade principal a travessia de seus biomas a pé, sem nenhum tipo de montaria e com o Nascen e seus Peões completamente reféns do clima, emboscadas de inimigos e chegada da noite, período do dia em que os monstros mais perigosos da região perambulam à procura de viajantes incautos. Andar é o que o jogador mais vai fazer ao longo do jogo e, mesmo que isso teoricamente possa parecer algo moroso e entediante, garanto que para o público que se conectar com a proposta e admirar a ambientação cuidadosamente construída em cada árvore e montanha de Vermund, será uma recompensadora jornada.
Uma quantia considerável dos sistemas do jogo são ditados e concebidos em torno da dificuldade de locomoção entre cidades e povoados. Como explicado anteriormente, Dragon's Dogma II deseja ser, em primeiro lugar, um simulador que não entrega ao jogador as mecânicas mais convenientes, mas sim o que os temas do jogo exige. A mecânica de acampamentos encontrados ao relento durante as caminhadas do Nascen servem para poupar o jogador de viajar à noite, quando é mais perigoso. Porém, acampar nesses locais requer um kit de acampamento, item que com certeza vai pesar nas mochilas dos Peões e na do Nascen e resultará na diminuição da velocidade de caminhada e recuperação de estâmina. Ou seja, cada partida para trajetos mais longos pede que o jogador planeje muito bem como proceder se não deseja gastar um dos escassos e preciosos itens que possibilitam o teleporte instantâneo pra cidades já visitadas. Percebe-se como muitos elementos e até a economia e gerenciamento de itens giram em torno dessa recusa por parte do jogo em trivializar o ato de viajar.
Felizmente, esse mesmo ato de viajar é algo que o jogo sabe trabalhar muito bem. A reatividade que citei anteriormente se aplica com a mesma intensidade aos ambientes inóspitos longe das grandes cidades e é o que faz a travessia pelo mundo aberto brilhar como vi poucos outros jogos fazerem. As possibilidades são diversas, desde quebrar pontes de madeiras para criar escadas que levam a lugares anteriormente inacessíveis, até usar uma recentemente encontrada caverna para atravessar um terreno íngreme e ascender em uma ravina inexplorada. Isso tudo inserido no contexto de biomas construídos com tanto carinho e cuidado que transbordam vida em cada canto.
Mas, se o Nascen possui dinheiro e você não se importa em gastá-lo, Dragon's Dogma II tem um dos, senão o melhor, sistema de transporte instantâneo que presenciei na mídia. É uma espécie de viagem rápida mas perfeitamente contextualizada na ambientação de Vermund. Em cada uma das grandes cidades do jogo, existem viajantes que oferecem suas carroças puxadas por bois como transporte entre povoados. Basta pagar uma quantia simbólica e eles te levarão para alguns pontos pré-determinados do mapa. No entanto, o processo não se resume a apenas isso, pois como já repetido incansavelmente ao longo desse texto, Vermund é assolada por monstros e absolutamente nada isenta a carroça que leva o jogador de ser atacada por um bando deles. Caso isso ocorra, não há nada que resta a fazer senão despachá-los o mais breve possível e seguir viagem torcendo que mais nada o impeça de dormir tranquilamente no trajeto. É brilhante pela quantidade de imersão adicionada a uma mecânica tão banalizada em jogos atualmente e mais um elemento que destaca, outra vez, Dragon's Dogma II como um retrato de peculiaridades em um mar de acomodação e inércia.
A seção a seguir CONTERÁ SPOILERS da reta final de Dragon's Dogma II. Leia apenas caso já tenha zerado o jogo ou por conta e risco.
Sobre ciclos e guardiões
É evidente para fãs do primeiro Dragon's Dogma que a história do segundo título segue um caminho muito semelhante àquele jogo. Uma sequência de intrigas palacianas baseadas no direito de reinar do Nascen, a chegada do dragão e consequente jornada para matá-lo e o papel do seu personagem no ciclo de batalhas eternas entre humanos e draconídeos. Até mesmo essa sequência se denomina apenas como “Dragon's Dogma”, e não “Dragon's Dogma II”, como é evidenciado na tela de título e créditos iniciais. Definitivamente, com a intenção de causar dúvidas entre os jogadores, essa decisão manteve meus pensamentos concentrados do início ao fim em suas possíveis justificativas. Seria esse jogo uma espécie de substituto ao original, já que agora o time de desenvolvimento realmente entregou o que eles planejavam lá em 2012? Ou talvez, pela temática de ciclos, a ideia é que a sequência corre em um paralelo metafórico ao primeiro jogo e portanto ambos são apenas “Dragon's Dogma”? Para minha satisfação, a resposta foi muito mais interessante e autorreflexiva do que minha imaginação tinha me feito acreditar.
Durante a missão final do segundo jogo, uma inversão de conceitos é apresentada caso o jogador deseje seguir a rota para o “final verdadeiro”: para quebrar o ciclo que havia já aprisionado o Nascen do jogo de 2012, nosso personagem deve tomar a difícil decisão de matar a si próprio junto ao dragão que se impõe como chefe final daquela jornada e mantenedor do ciclo que mantém o mundo em um permanente estado de falsa felicidade. Caso esse seja o caminho escolhido, o “pós-game” é apresentado, tendo como pano de fundo agora o mesmo mundo visitado por muitas horas porém completamente devastado pela ira do destino e mais perigoso do que jamais tinha sido. A câmera sobe aos céus e o título “Dragon's Dogma II” se impõe sobre a tela, finalmente revelando as reais intenções da narrativa.
Apenas quebrando as noções que a narrativa procura impor sobre a vontade do jogador e recusando o status quo, que em certo sentido metalinguístico pode se referir ao intervalo de 12 anos entre o original e sua sequência, é que o Nascen/jogador pode chegar ao segundo jogo, mesmo que esse movimento seja às custas de um senso geral de continuidade. Resolvi adicionar essa seção ao texto para tratar especificamente desse momento do jogo, que brinca com tantos conceitos de narrativa de fantasia e sobre ciclos.
Sobre a jornada
A experiência com Dragon's Dogma II é verdadeiramente revigorante. Uma obra que desafia muito do que é imposto como “bom e funcional game design”, mas que termina por vezes acorrentando a criatividade de equipes inteiras que anseiam por quebrar esse ciclo e desenvolver algo único. Corajoso em suas ideias e execuções, com um senso muito lúcido de direção e onde chegar com cada elemento inserido e que, apesar de vacilar muitas vezes na otimização, principalmente durante batalhas contra monstros gigantes, ainda move a mídia na direção certa como apenas as melhores obras fazem.
Mais que tudo isso, uma carta de amor a videogames como força artística, mostrando como todos os responsáveis por sua concepção acreditam 100% na capacidade da mídia em transmitir sentimentos das formas mais inesperadas, mas especialmente em uma jornada para quebrar a ideia de convencional.
A análise do jogo foi feita por @EldenSnake e só foi possível graças à parceria com a Nuuvem
Dragon's Dogma II também está disponível para Xbox Series S | X e PC
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