top of page

Luto - Análise

ree

Eu sabia que Luto (2025) seria um jogo especial quando, já na primeira meia hora de jogo, tive a possibilidade de assistir A Noite dos Mortos-Vivos (1968), o seminal filme de George Romero, na TV de um dos quartos da casa onde o jogo se passa. Não um trecho ou uma cena, mas o filme em sua íntegra. E assistindo eu fiquei, por 20 minutos enquanto almoçava e refletia sobre a estranheza e paradoxalmente carisma da inserção de um filme em domínio público em um jogo que, apesar de pertencer também ao gênero de terror, à primeira vista não aparentava dialogar com os mesmos temas que Romero planejou ao popularizar zumbis definitivamente.


O que Luto pretende fazer de fato com essa interação opcional é trazer à tona o que já permeava sutilmente o jogo até esse ponto, mas que agora é escancarado para o jogador usar como uma lente esclarecedora pelo resto da experiência: Luto pretende explorar as diferentes formas de arte e mídias com as quais recordamos e registramos nossos momentos com entes queridos quando ainda em vida e como interagimos com essas memórias quando eles já partiram. 

ree

E acredite, essa experimentação linguística com a inserção do filme é apenas uma em um jogo que mergulha profundamente na exploração das possibilidades de integração entre manifestações artísticas. A utilização de um aspect ratio mais comum para filmes (2.39:1), a presença de um narrador à la The Stanley Parable (2013) - também mais utilizado em cinema e literatura, e sessões focadas na leitura de um texto no formato de roteiro cinematográfico são algumas das peças que compõe uma experiência interativa que executa com muito esmero um dos aspectos que prezo cada vez em jogos de terror: imergir o jogador no mundo e questionamentos da obra não apenas através da perspectiva em primeira pessoa ou com design de áudio aterrador, mas através de um diálogo metalinguístico direto com o jogador e suas noções pré-estabelecidas sobre o que constitui a mídia de videogames. 


Luto não tem vergonha de empunhar suas inspirações de forma muito clara e aberta, sendo a série Silent Hill a principal e mais importante delas, graças a alguns breves momentos de acenos de cabeça para a consagrada franquia e, sobretudo, pela estrutura de loop em uma casa, semelhante a P.T. (2014). A residência de dois andares onde uma parte considerável do jogo se passa e sua arquitetura que por vezes subverte a lógica espacial é um dos pontos mais fortes de Luto, funcionando como uma representação bastante evidente do lugar mental onde o protagonista, Samuel, se encontra, que é a total negação e incapacidade de seguir em frente com sua vida após tantas perdas de entes familiares. Essa premissa inicial compromete-se a explorar a psique desse personagem através dos questionamentos propostos pela investigação dos limites linguísticos da mídia em que se encontra e, para minha satisfação total até os créditos finais rolarem, atinge alturas emocionais muito mais altas do que eu antecipava.


Não apenas os temas recebem um tratamento muito competente através de narrativa contada por mecânicas fundamentais, como também o jogo se preocupa em jamais tirar a agência do jogador em participar das discussões apresentadas. Respostas são entregues, mas nunca são totalmente definitivas. E aí se encontra um dos maiores méritos de Luto: compreender que um assunto tão delicado pode ser experienciado de maneiras muito distintas por diferentes indivíduos e que nenhuma dessas vivências é mais ou menos válidas ou maduras que outras, a de Samuel é apenas um exemplo delas. 

ree

A liminaridade do terror encontrado em Luto é uma das particularidades desse jogo que mais atingem meus gostos recentes. Espaços vagamente mundanos abandonados e com evidências de que alguém já os habitou anteriormente, imprimindo sua personalidade, gostos e sentimentos àquele ambiente, são imagéticas simultaneamente melancólicas, nostálgicas e aterrorizantes.


O sentimento de desprendimento e alienação à uma situação crítica ou espaço físico são conceitos muito utilizados no gênero de terror, até mesmo em jogos, mas Luto se diferencia de seus similares precisamente por transformar os locais nos quais o jogo se passa em metáforas para o estado mental do protagonista e, como o próprio significado da palavra “liminar” implica, um espaço de transição entre dois momentos da vida de Samuel. A sensação de desolação transmitida por essas escolhas estéticas e temáticas para o level design é amplificada pelo fato de o jogador nunca conseguir ver o rosto de Samuel, nem mesmo suas mãos e pernas quando a câmera em primeira pessoa e olhando para baixo. Essa impessoalidade pode parecer apenas um detalhe não intencional do jogo, mas, como provado em um momento muito merecido da experiência, é uma decisão totalmente planejada. 


Eu desenvolvi ao longo dos anos uma resistência muito grande ao sentimento de medo ou apreensão que muitas obras de terror procuram passar. De maneira alguma meu interesse ou predileção por obras desse gênero é intensificada ou reduzida pela ausência desses sentimentos em mim, mas muitas vezes sinto falta de experienciar o medo que passava na minha infância assistindo um filme assustador ou o terror existencial que senti na minha adolescência quando joguei Silent Hill 2 (2001) pela primeira vez.


Consigo citar apenas o excelente filme japonês Noroi (2005) como exemplo de obra de arte que consumi nos últimos anos que me causou sentimentos de desconforto enquanto assistia. Então foi uma, ironicamente, feliz surpresa pra mim quando senti minha espinha gelando e as palmas das minhas mãos começando a suar em diversos momentos de Luto. O que torna a tensão tão eficaz no jogo é, assim como sua ambientação, a casualidade com a qual ela é tratada.

ree

A maior parte dos sustos em Luto, se é que pode-se chamá-los assim, ocorrem sem qualquer preparação e cerimônia, tão comuns em jogos mais preguiçosos do gênero, que elevam sua música e efeitos sonoros para causar os baratos jumpscares. Muito pelo contrário, o que o jogo faz é retirar qualquer suspense de quando, por exemplo, um fantasma passa por uma janela que está em um canto da tela. O que essa ausência de construção e importância artificial faz é transmitir uma ideia muito clara: não era pra você ter visto isso.


Em inúmeros momentos durante minha jornada com o jogo percebi que estava genuinamente apreensivo como não me sentia há muitos anos com qualquer novo jogo que jogasse e isso solidificou em minha mente o terror de Luto como muito eficaz. Tal como a perda de uma pessoa próxima, as assombrações em Luto simplesmente ocorrem sem aviso prévio e passam sem deixar vestígios, só restando a quem fica lidar com os sentimentos causados que acabou de testemunhar.

ree

Propositalmente deixei de mencionar nesse texto alguns poucos aspectos chave que considero grandes qualidades de Luto, como por exemplo como ele lida com a banalização da tensão que morrer para um inimigo ou falhar em um quebra-cabeças pode causar ou como mudanças sutis na direção de arte para transmitir algo que ocorreu narrativamente, além da hora final do jogo que é um dos melhores, senão o melhor, finais em jogos desse ano, mas quero com esse texto, além de externalizar tudo que senti com Luto, incentivar que o leitor dê uma chance para um jogo que certamente vai passar por baixo do radar da maior parte das pessoas.


É uma gema dos jogos de terror dessa década e utiliza a própria mídia de forma brilhante para contar uma história sobre um tema delicado que, se não tratado com o devido cuidado, pode acabar sendo um desastre, algo que Luto é diametralmente oposto.



ree


A análise foi escrita pelo Paulo (@EldenSnake)


A cópia do jogo foi cedida pela SelectaPlay

Wallpaper-site.png

Encontre-nos nos principais portais

  • Logo-Overcast
  • Deezer
  • Spotify
  • Twitter
  • Logo - Amazon Music
  • Logo - Pocket Cast

© 2023 por PS Talks | Blog.

bottom of page