Poucas vezes jogos nos surpreendem genuinamente. Não falo aqui de jogos com os quais temos alguma afinidade prévia, como é por exemplo a franquia Shin Megami Tensei para quem nunca jogou e conhece a franquia Persona. Penso em obras diferentes que conseguem mais que se segurar com os próprios pés, chegando a correr livremente como se o espaço, a energia e o tempo fossem meras circunstâncias da realidade, irrelevantes porque a sua autonomia a permite continuar sempre na frente.
Para mim, em 2021, era essa a situação do Hollow Knight. Parecia que nada que eu jogasse do gênero metroidvania era capaz de chegar ao nível da obra-prima da Team Cherry. Pode parecer um pensamento prepotente, tendo em vista que tive pouco contato com metroidvanias - principalmente considerando as graves lacunas de clássicos da franquia Metroid que eu infelizmente ainda não tive o prazer de conhecer - mas eu nunca tive essa perspectiva como uma forma de desprezo aos outros jogos. Afinal, eu joguei e me diverti com eles até o fim, inclusive platinei. O ponto é que, meu primeiro foi um outliner, então ele colocou as expectativas no extremo. E parecia que nada ia chegar perto disso, já que mesmo o clássico Castlevania Symphony of the Night - que considero mais impressionante e revolucionário que Hollow Knight - não foi capaz de passar o meu carinho por Hollow Knight. Isto é, até que Yi e Nine Sols chegassem agora em 2024.
Vou ser direta aqui, afinal, isso é só a introdução: eu ainda acho Hollow Knight um jogo mais importante na minha vida e, realmente, é uma posição extremamente difícil de mudar - praticamente impossível. Porém, minha vida é uma coisa, o gênero metroidvania e suas ideias é outra completamente diferente. E, nesse aspecto, Nine Sols é um destaque absurdo - e digo com um sorriso no rosto - que ele rivaliza com o ambíguo Indie que todo mundo que não gosta da indústria AAA adota como referência de qualidade. Sem mais delongas, vamos falar de quem teve menos voz do que merece: Nine Sols.
Realmente é um “Metroidvania”?
Vou começar pelo aspecto que, inicialmente, eu considerava um defeito do jogo. O gênero metroidvania se construiu em cima da exploração e do vai e vem. Quem nunca se perdeu no castelo do Drácula ou nas profundezas de Hallownest - ou nunca se deparou com aquele meme do “eu tô perdido” - certamente ainda precisa conhecer Metroidvanias. Mas, Nine Sols é um tanto peculiar nesse aspecto, porque o jogo é muito mais linear. Veja bem, o icônico Castlevania tem uma estrutura linear, mas você tem uma certa diversidade de rotas viáveis para chegar em objetivos importantes na sua jornada. Hollow Knight idem, apesar de ele ser bem mais aberto. Nine Sols construiu o vai e vem de uma maneira um pouco diferente e, sinceramente, não é um problema.
A lógica central da exploração de Nine Sols como metroidvania é a seguinte: você tem um objetivo A que fica no lugar B. Então a sua rota é ir para lá. Você tem um caminho principal que leva até o seu o objetivo e outros secundários com itens secretos, dinheiro, diversos chefes menores de área e conteúdo da lore, até cenas especiais sobre personagens importantes da história aparecem aqui. Os mais astutos já conseguiram perceber a ideia desse level design: você pode ir direto para o seu objetivo, mas se você quer ficar forte, conhecer a personalidade e desenvolver as habilidades de Yi, é fundamental explorar. A opção de conhecer pela gameplay só a história funciona e pode ser feita a hora que você quiser, mas conhecer os mapas, seus segredos e aproveitar tudo exige uma exploração atenciosa e amadurecimento das mecânicas de movimentação. Se é uma abordagem que faz ele “menos metroidvania”, eu sinceramente não poderia me importar menos, porque Nine Sols conseguiu entregar o mais importante através desse modelo: uma exploração consistente e uma orientação de objetivo nítida. Por tudo dito neste parágrafo e tendo como referência o modus operandi das principais obras do gênero metroidvania, acredito que Nine Sols se senta na mesma mesa.
Eu aprendi com o Lobo
Desde o primeiro trailer, o combate de Nine Sols era o seu maior destaque. Não eram poucos os motivos para que os holofotes estivessem intensos nesse aspecto.
Desde 2019, ano em que Sekiro foi considerado jogo do ano no The Game Awards, mecânicas de parry e combates velozes baseados em defesa rápida e contra-ataque astuto ficaram cada vez mais em alta. Nine Sols foi totalmente aberto sobre essa inspiração em Sekiro, mas o mais interessante é que ele usou a inspiração como de fato uma inspiração. Infelizmente, muitas vezes jogos que se baseiam por obras tão recentes sofrem do mal da falta de originalidade. Eles tentam tanto ser como o que admiram que esquecem do mais importante, criar uma voz própria. No fim, acabam sendo jogos legais, mas que não passam disso, porque o processo criativo foi deixado de lado em nome de seguir a tendência do momento. O Nine Sols felizmente passou longe de cometer esse erro.
Falando sobre as mecânicas, aqui não tem barra de postura. Na verdade, este conceito foi implementado como uma parte da barra de vida de Yi e funciona da seguinte forma: todos os ataques que são possíveis de defletir com o parry tem uma janela de parry perfeito, que quando acertado, bloqueia todo o dano e pode até comprometer o inimigo deixando-o vulnerável ou causando dano de postura nele, se não ambos, o que só deixa o parry perfeito ainda mais atrativo.
Entretanto, fora dessa janela perfeita, as coisas são diferentes caso você se defenda. Yi receberá um dano vermelho na sua barra de vida, a qual regenera com o tempo e volta a ser a sua barra de vida normal. Isso está diretamente vinculado com a forma como YI luta, a natureza do seu poder de combate, o que torna a construção da mecânica como uma parte do desenvolvimento de Yi - um fator muito bacana, já que não é fácil vincular a narrativa com a gameplay de forma tão coesa - mas o mais interessante é como essa possibilidade torna o combate extremamente dinâmico e influência o uso do parry. Simplesmente não tem motivo para você não tentar acertar o parry, porque mesmo que você pegue uma janela imperfeita, você não toma dano diretamente na sua vida, então você pode simplesmente derrotar qualquer inimigo apenas se protegendo com parrys imperfeitos, contanto que eles não te acertem, porque aí vem a punição: a barra vermelha inteira se converte em dano efetivo caso você seja acertado. A generosidade tem seu preço, mas pela entrega e dinâmica que o jogo ganha, é uma punição justa.
Aliás, já que punição foi mencionada, tá na hora de dizer como você vai punir todos os inimigos pelo caminho - ou pelo menos o que você vai morrer tentando fazer. A primeira forma, a principal e mais óbvia, é com a espada. Sem segredos aqui, combo de 3 golpes, uma espada rápida que pode ficar brutal com alguns incrementos, mas nada impressionante. A segunda forma é meio secundária, trata-se de algumas armas de longa distância desbloqueáveis ao longo da campanha, que eu confesso que usei pouquíssimo, mas quando usei, cumpriram seu papel. A terceira vem em dose tripla: os estilos de talismãs. Você começa com o intermediário e, evoluindo Yi, desbloqueia o estilo da água e o estilo de controle total. A diferença entre eles está relacionada às condições de detonação e dano causado. O estilo da água é rápido, usa pouco QI e explode sozinho, basta acertar, o intermediário exige um pouco mais de tempo e deixa Yi vulnerável, mas causa mais dano e pode usar mais energia, por último, o controle total permite usar toda a sua energia, a explosão brutal dele tarda, mas chega com tudo. Todas essas formas de combate são viáveis e se complementam em Nine Sols. Não acho que tenha um modo certo de lutar aqui, penso que o ideal é se adaptar de acordo com o seu inimigo e entender qual é a abordagem que mais funciona para você. Encontrei boas oportunidades para todos os talismãs, vi espaço para as armas de longa distância nas lutas e aproveitei as aberturas para atacar com a espada.
Por fim, uma síntese sobre o combate de Nine Sols, ele é sólido e surpreendente original, consegue adicionar camadas de complexidade em conceitos simples e faz muito com pouco. Considero um exemplo de inspiração a ser seguido por qualquer um que almeja aproveitar uma tendência e não queira ser só mais um jogo legal, o que é bom, mas é sempre melhor quando a criatividade permite reformular uma boa ideia e criar a sua própria
Uma emocionante jornada de espetáculo
A jornada de Yi seria muito tranquila só com os elementos de combate que mencionei anteriormente. Então, tá na hora de dificultar as coisas - ou melhor - adicionar a emoção que está faltando no jogo. Afinal, um bom combate não é muito útil se você não tem o que combater. E felizmente o que não falta em Nine Sols são chefes bons.
Por motivos de spoilers eu não posso comentar muito. Mas posso com certeza absoluta afirmar que as lutas principais do jogo são emocionantes e você não vai querer largar até vencer. Inclusive, há uma imagem lá embaixo censurada que transparece com clareza o nível de tensão que as lutas mais intensas podem chegar aqui. Acredite, não foram poucas vezes que cenários como este aconteceram nessa jornada. Eu joguei no Steam Deck e me lembro de correr atrás do meu carregador porque a bateria estava acabando e eu não queria parar antes de vencer algumas Boss Fight que encontrei, que por sinal estão muito espalhadas para um metroidvania. Penso que este gênero não precisa de lutas tão frequentes, mas que elas precisam ser desafiadoras, recompensadoras e memoráveis.
É com alegria que posso afirmar: Nine Sols acertou em tudo. Apenas alguns chefes iniciais e infelizmente a grande maioria dos secundários são apenas aceitáveis, mas fora esses, todos os principais são icônicos e pouquíssimos secundários eu diria que são fracos.
Imagem editada, não reflete exatamente como é no jogo
Redenção e dever
Vou comentar brevemente sobre a narrativa de Nine Sols aqui. Os motivos disso são o fato de eu não ter me aprofundado sobre a lore, então é inviável para mim desenvolver uma opinião que respeite e valorize o enredo como ele merece, e principalmente porque eu penso que é uma história que você deveria conhecer por conta própria, da mesma forma que eu fiz.
A minha sensação jogando com Yi e vendo os eventos do jogo foi a necessidade de consertar os meus erros e que eu tinha uma missão para cumprir. A todo momento eu dava um passo em frente em direção ao objetivo, conhecendo várias personagens ao longo do caminho que reforçam esse sentimento de culpa e tiram a máscara - e às vezes até umas roupas - que Yi tem sobre seu corpo como protagonista. Quem ele é, o que ele fez e porquê ele toma suas decisões vai ficando claro a cada área e, no final, não tem volta a não ser colher os frutos do que foi plantado anos atrás.
Eu me emocionei com os eventos relacionados a família de Yi, especialmente com uma personagem que aparece bastante em flashbacks nas transições de cena. No fim, acredito que Nine Sols conseguiu trazer uma boa história, por mais que ela não seja revolucionária e até pouco original no sentido de temática, o saldo de personagens marcantes, com momentos especiais e bons plot twists compensa muito bem.
Obrigada pela aventura, Yi
Encerrando este texto, acredito que agora é óbvia a qualidade de Nine Sols e eu não preciso de mais motivos para justificar a importância de jogar este jogo na primeira oportunidade que você tiver. Eu sei que não abordei questões como a direção de arte, trilha sonora e as conquistas do jogo, mas são todos traços que considero positivos e os poucos aspectos negativos que existem hoje (Junho de 2024) - como alguns travamentos em seções específicas que exigem um loading muito veloz - são pequenos demais para merecer a minha atenção, quem dirá a de quem está lendo, cujo objetivo deve ser conhecer o que é mais relevante sobre o jogo.
Despeço-me ansiosa por um lançamento para os principais consoles e fortemente recomendo Nine Sols para todos os apaixonados por Sekiro, metroidvania e jogos Indie que, mais que inspirados em boas ideias, são criadores de novos conceitos criativos e originais.
A análise foi escrita pela @Athena_Wofel
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